Redução de danos também é importante para combater o tabagismo

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Regulamentar vapes e cigarros eletrônicos no Brasil é fundamental para implementar uma política efetiva de redução de danos para fumantes, uma medida que respeitaria o perfil, o tempo e o grau de adicção de cada indivíduo.

A luta contra o tabagismo é dura e nos coloca diante de uma difícil realidade: o tabaco tradicional causa a morte de mais de 8 milhões de fumantes a cada ano, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde). Desses, mais de 7 milhões são resultado direto do uso do cigarro, enquanto cerca de 1,2 milhão integra um grupo de não-fumantes expostos ao fumo passivo. Chegou a hora de melhores alternativas.

É preciso levar em conta que o tabagismo é uma questão de altíssima complexidade. Não se pode tratá-lo como uma simples chave que, uma vez girada no sentido anti-horário, cessa o consumo de nicotina. Décadas de experiências no combate a essa doença não deixam dúvidas de que precisamos de uma solução que respeita o perfil, o tempo e o grau de adicção de cada fumante adulto.

E é justamente nesse ponto que chegamos a um tema muito importante, mas ainda tratado como um tabu em diversos segmentos da sociedade civil. Mais do que nunca, precisamos conversar abertamente sobre a aplicação do conceito de redução de danos para apoiar a comunidade de cerca de 21 milhões de fumantes adultos no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde.

Trata-se de uma política já adotada no Brasil e no mundo para diminuir os prejuízos causados por diferentes drogas lícitas e ilícitas – e que pode trazer resultados animadores também no combate ao tabagismo.

Diferentes estudos apontam que os dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs) podem ser menos prejudiciais à saúde do que os cigarros tradicionais, mostram potencial para reduzir os danos causados pela queima do tabaco e têm apresentado uma eficiência igual ou superior às terapias de reposição de nicotina (assim como outros meios convencionais, como adesivos e gomas de mascar) para diminuir o consumo ou até mesmo eliminar o vício de forma gradativa.

Antes de seguir nesse debate, vale refletir sobre a importância da redução de danos. É fundamental compreender por que esse conceito tem sido aplicado para combater ou retardar os efeitos nocivos de diferentes doenças e condições, sempre com amparo em evidências científicas e com base num forte compromisso com a saúde pública e os direitos humanos.

É muito importante ter a clareza de que a redução de danos é uma estratégia de saúde pública que busca controlar possíveis consequências adversas ao consumo de psicoativos – lícitos ou ilícitos – sem que, necessariamente, o uso dessas substâncias seja interrompido.

Sua eficiência no Brasil pode ser exemplificada pelos resultados do programa de redução de danos (PRD) com foco em usuários de drogas injetáveis – uma iniciativa inaugurada em 1989 na cidade de Santos (SP). O programa levou mais de 20% dos usuários atendidos a procurarem tratamento para dependência química1. Ou seja, foi possível abrir caminho para resgatar pessoas que, de outro modo, continuariam marginalizadas e totalmente vulneráveis.

A redução de danos não beneficia só quem sofre com os malefícios das drogas que consome. Ela também faz diferença para suas famílias e a comunidade onde vive, já que ajuda a garantir a proteção da saúde e a boa convivência com todos. Ou seja, há impacto tanto na saúde individual quanto na comunitária.

Por meio de intervenções facilitadoras e não coercitivas, os projetos de redução de danos são sempre centrados nas necessidades de cada indivíduo. Usuários e familiares que se envolvem com essa iniciativa reconhecem que ela é capaz de mudar vidas para melhor.

Passo a passo e dentro de uma hierarquia de ações, mudanças acontecem de forma gradual. Desta forma, as ações possíveis – como manter a saúde e o bem-estar das pessoas – antecedem as ações desejáveis – aquelas mais diretamente relacionadas à abstinência. Isso é muito mais realista do que qualquer determinação de que, a partir de dado momento, tudo seja proibido com base no incentivo a uma abstinência forçada e imediata. Não há botão que desligue, de uma hora para outra, um problema tão grave de saúde pública.

Em termos práticos e levando esse pensamento ao centro da discussão, todos concordam que manter as pessoas que fumam tabaco vivas e protegidas de danos irreparáveis pode ser considerado uma prioridade urgente. É melhor controlar e gerenciar os danos do hábito de fumar do que sucumbir de vez aos seus malefícios, evitando mais mortes causadas pelo tabaco e protegendo famílias da perda de um ente querido, muitas vezes o seu principal provedor.

É nesse sentido que não se pode prescindir de alternativas potencialmente menos danosas do que o cigarro tradicional e que podem até ajudar um fumante adulto a largar o vício de forma gradual. E há estudos que demonstram porque o vape e o cigarro eletrônico podem, de fato, exercer esse papel.

Segundo uma pesquisa da Roswell Park Cancer Institute, o vapor gerado pelos cigarros eletrônicos não deixa de conter substâncias potencialmente tóxicas, mas elas possuem níveis entre 9 e 450 vezes mais baixos se comparados aos cigarros tradicionais de nicotina2.

Em relação ao potencial de mortes evitáveis, um estudo no Reino Unido com uma amostragem de 181 pessoas estimou que a cada milhão de fumantes que passassem a consumir cigarro eletrônico, pode-se esperar uma redução de mais de 6.000 mortes prematuras por ano3. Já nos EUA, estima-se que ao longo de dez anos o cigarro eletrônico possa reduzir em 6,6 milhões o número de óbitos prematuros em um cenário otimista; e em 1,5 milhão em um cenário pessimista4.

Além disso, estudos científicos associam de forma preliminar a substituição dos cigarros tradicionais por congêneres eletrônicos a uma melhora objetiva e subjetiva das condições de asma5.

A mensagem central que quero deixar aqui é que a redução de danos aplicada ao combate ao tabagismo traria todas as ferramentas necessárias para cumprir esses objetivos. No entanto, a ausência de uma política estruturada e efetiva que caminhe nesse sentido pode causar prejuízos para milhares de fumantes adultos no Brasil. Mas os debates seguirão acontecendo, em que pese a mais recente decisão da Anvisa que manteve a proibição da venda e da importação de cigarros eletrônicos no país.

Portanto, podemos continuar esperando que, em algum momento, vapes e outros produtos semelhantes passem a ser legalmente comercializados no Brasil após uma possível revogação da Resolução da Diretoria Colegiada RDC n° 46 da Anvisa. Com base nessa perspectiva, é fundamental que as autoridades brasileiras estejam preparadas para regulamentar não somente os DEFs, mas também o seu uso como ferramenta para conter riscos.

É dever do Estado regulamentar o tema e estabelecer critérios de segurança. A omissão hoje instaurada (sob as vestes de proibição) significa violação dos deveres constitucionais do Estado previstos no artigos 196 e 197 da Constituição Federal, segundo os quais: “a saúde é dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” e que “são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle“.

É verdade que políticas e práticas de redução de danos têm o dever de apoiar mudanças de comportamentos individuais em todos os fumantes. Mas, em paralelo a isso, é essencial agir proativamente pela mudança de políticas e leis em nome da diminuição de prejuízos à saúde não apenas desses indivíduos, mas também de toda a coletividade. A proibição aos vapes e cigarros eletrônicos acaba por provocar a manutenção dos altos riscos associados aos cigarros tradicionais – e sem que haja uma alternativa legal e menos danosa à queima do tabaco. Está na hora de o Brasil legalizar melhores alternativas aos cigarros tradicionais.

Fontes:

  1. Folder “Redução de Danos – Saúde e Cidadania” do Ministério da Saúde e do Governo Federal do Brasil: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/folder/10006003202.pdf
  2. Goniewicz ML, Knysak J, Gawron M, Kosmider L, Sobczak A, Kurek J, et al. Levels of selected carcinogens and toxicants in vapour from electronic cigarettes. Tob Control. 2014;23(2):133-9.
  3. Shahab L, Goniewicz ML, Blount BC, Brown J, McNeill A, Alwis U, et al. Nicotine, carcinogen, and toxin exposure in long-term e-cigarette and nicotine replacement therapy users: a cross-sectional study. Ann Intern Med. 2017;166:390-400. DOI: http://dx.doi.org/10.7326/M16-1107
  4. Levy DT, Borland R, Lindblom EN, Goniewicz ML, Meza R, Hol-ford TR, et al. Potential deaths averted in USA by replacing ciga-rettes with e-cigarrettes. Tob Control. 2017;27:18-26. DOI: http://dx.doi.org/10.1136/tobaccocontrol-2017-053759
  5. Polosa R, Morjaria J, Caponnetto P, Caruso M, Strano S, Battaglia E, et al. Effect of smoking abstinence and reduction in asthmatic smokers switching to electronic cigarettes: evidence for harm reversal. Int J Environ Res Publ Health. 2014;11(5): 4965-77. DOI: http://dx.doi.org/10.3390/ijerph110504965
Vanessa Viana
Vanessa Viana
Vanessa Viana é advogada especializada em Direito Administrativo e Regulatório.

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